sábado, abril 02, 2005

O MONSTRENGO

O monstrengo que está no fim do mar
na noite de breu ergueu-se a voar:
à roda da nau voou três vezes,
voou três vezes a chiar,
e disse:-«Quem é que ousou entrar
nas minhas cavernas que não desvendo,
meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
- «El-Rei Dom João Segundo!»


-«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
-disse o mostrengo, e rodou três vezes,
três vezes rodou imundo e grosso.
-«Quem vem poder o que só eu posso,
que moro onde nunca ninguém me visse
e escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu e disse:
-El- Rei Dom João Segundo!»


Três vezes do leme as mãos ergueu,
três vezes ao leme as reprendeu,
e disse no fim de tremer três vezes
-«Aqui ao leme, sou mais do que eu:
sou um povo que quer o mar que é teu;
e mais que o mostrengo, que me a alma treme
e roda nas trevas do fim do mundo,
manda a vontade, que me ata ao leme,
de El-Rei Dom João Segundo!»

Fernando Pessoa